domingo, 17 de julho de 2016

A deficiência da informação esportiva na série "Eficientes" do Esporte Espetacular

  Há 52 dias de iniciarem os Jogos Paralímpicos Rio/2016, a décima quinta edição do megaevento esportivo tem sido tratada pelo Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) como um agente catalisador de mudança da ótica com que se olha as pessoas e os atletas com deficiência. O sucesso esportivo do esporte para pessoas com deficiência no Brasil neste ciclo paralímpico que encerra nos Jogos do Rio (2012-2016), trouxe visibilidade social e midiática para essa manifestação esportiva dentro do país. A sétima posição nos Jogos de Londres/2012 e o recorde de medalhas nos Jogos Parapan-americanos de Toronto/2015 (257 no total) são dois marcos dessa transformação do paralimpismo em fenômeno popular e massivo na cultura esportiva do país.
  Podemos considerar que a não transmissão televisiva da avalanche de medalhas conquistadas pela delegação brasileira nos Parapan-americanos de 2015 foi a chave para o reconhecimento popular e consequente popularização do paradesporto como objeto de consumo no país. Na ocasião, a cada dia de competição que os atletas brasileiros conquistavam inúmeras medalhas, o clamor popular nas redes sociais pela visibilidade midiática desses personagens, até então negligenciados do telespetáculo esportivo, se tornava mais forte. Exemplo disso foi que o CPB, aproveitando o movimento social comunicativo que ocorria nas redes, emplacou a hashtag, #hinotododia, que se tornou emblemática dessa virada midiática para o esporte paralímpico. Como desdobramento desse processo, os Jogos Paralímpicos, que até então eram um produto esportivo de baixo valor no mercado midiático brasileiro, virou automaticamente pauta permanente dos programas de jornalismo esportivo dos principais meios de comunicação de massa do país, tais como a Tv Globo e o seu "Jornal Nacional", e rapidamente teve seus direitos de transmissão televisiva para a edição de 2016 comprados com exclusividade pela referida emissora. Portanto, o megaevento esportivo paralímpico que está para acontecer é um marco representativo do processo dialético de popularização e midiatização do esporte de alto rendimento para pessoas com deficiência.



  Neste domingo, ao assistir o tradicional programa esportivo da rede Globo, "Esporte Espetacular", fui acometido por algumas reflexões acerca da abordagem que a emissora está se propondo a fazer do seu mais recente investimento esportivo, o esporte paralímpico. Ao lançar mais uma série de reportagens denominada de "Eficientes" (assistir aqui), dessas típicas do agendamento midiático-esportivo que acontecem as vésperas de grandes eventos esportivos, logo evidenciaram a proposta de mudança de paradigma com relação ao esporte e aos atletas paralímpicos, tirando o foco do signo linguístico, "Deficiente", para "Eficientes". Para aqueles aficionados pelo esporte e por qualquer tipo de manifestação que se desdobre dele, nada de novo na abordagem e na estruturação jornalística que os produtores da série fazem, que teve nesta primeira edição o atleta Alan Fonteles do atletismo como personagem principal. Contou-se a história de vida do velocista através de falas da família (mãe, irmã e esposa), de amigos da infância, de professores e de treinadores, recheada de choro e emoção pelas dificuldades enfrentadas por ele para chegar até a conquista da medalha de ouro nos Jogos de Londres/2012, na prova dos 200 metros rasos, vencendo o favorito e ídolo sulafricano, Oscar Pistorius. Tudo isso foi apresentado na reportagem fazendo a projeção e criando a expectativa de uma nova medalha na competição que inicia daqui a menos de dois meses. Portanto, apenas uma nova roupagem, com novos personagens que carregam consigo novos elementos de pauta como as deficiências, para uma mesma abordagem que a narrativa midiática faz com os seus produtos esportivos. Mais do mesmo. Tragédia, caridade, superação de limites, criação de expectativas, mitificação de ídolos esportivos em heróis da vida, assim como sempre se fez com os jogadores de futebol da seleção brasileira em vésperas de Copas do Mundo e com os atletas olímpicos antes de Jogos Olímpicos.



  Nesse trato com um novo produto, ainda em processo de apropriação por parte da mídia, alguns elementos concernentes ao esporte para pessoas com deficiência acabaram aparecendo de modo passageiro na construção da narrativa e me provocaram a colocar em foco de reflexão. A primeira delas é a origem da deficiência como fator possivelmente determinante para o modo como se focaliza e como se percebe a mesma. No caso do corredor, Alan Fonteles, que precisou amputar as duas pernas abaixo do joelho no 21º dia de vida por conta de uma falha congênita no desenvolvimento dos membros inferiores, a percepção dos outros e a autopercepção dele sobre a deficiência foi uma questão que chamou atenção. Para a mãe dele, por exemplo, ele realmente perdeu as pernas, pois nasceu com elas e precisou amputá-las. Para o atleta, diferentemente, ele disse não ter a sensação de ter perdido nada, pois cresceu e teve uma infância "normal" como todas as outras, mesmo sem as duas pernas. Nesse sentido, parece impossível dissociar o modo de percepção da deficiência ao modo como ela se originou, se congênita ou adquirida, e também do sujeito que a interpreta. No entanto, as orientações que instituições burocráticas do esporte paralímpico vêm dando para a mídia através de guias para se evitar expressões como "sofreu", "perdeu", "vítima de", parecem ser um importante esforço e movimento para mudança de paradigma do coitadismo em torno das pessoas com deficiência (guia britânico, guia do Comitê Internacional, guia brasileiro), mas também podem ser consideradas um preciosismo da pragmática linguística do âmbito acadêmico e esportivo que os próprios protagonistas desse cenário não se apegam e estão muito pouco preocupados, como pudemos ver nas falas da própria mãe de Alan, que em vários momentos falou do momento da "perda das pernas" pelo filho, e do próprio Alan, que a tratou o tempo inteiro como algo normal, natural.
  Outro elemento que apareceu na reportagem foi que o próprio Flavio Canto, apresentador e repórter da série, misturou Olímpico e Paralímpico ao perguntar para Fonteles como era o sentimento de ter subido a um pódio Olímpico. Essa confusão que se faz entre as duas manifestações esportivas parece que vai se perpetuar ainda por um bom tempo, sobretudo no âmbito midiático, pois o próprio movimento paralímpico iniciou o seu processo de construção e legitimação como fenômeno paralelo ao Olímpico e agora que vem tentando se colocar como manifestação esportiva separada, destituída e diferente daquela mais antiga. Por isso, inclusive, a orientação para mudança do uso da expressão Paraolímpico para Paralímpico como forma de diminuir e encerrar essa mistura e confusão com o correlato Olímpico. Vamos continuar acompanhando e ver até onde vão as comparações e as confusões que a narrativa midiática vai fazer entre as duas manifestações esportivas. Ver artigo científico sobre essa questão aqui.
  Por fim, pode parecer uma sutileza, mas a narrativa midiática da série ao apelar hiperbolicamente para os elementos afetivos e emocionais que giram em torno do esporte e dos atletas, deixa de informar sobre questões importantes para o esclarecimento da complexidade do fenômeno esportivo. Um dos assuntos da reportagem foi a dificuldade de Fonteles no momento da iniciação esportiva no atletismo com as próteses que ele tinha. Nas primeiras competições, ainda quando criança e adolescente, o atleta corria com a prótese convencional de madeira, que o machucavam nas pernas, e num dado momento um membro do CPB conseguiu e lhe deu uma prótese de fibra de carbono, específica para velocistas do atletismo adaptado. Foi depois disso que o atleta deslanchou em nível nacional e internacional, chegando ao ouro em Londres. O problema na narrativa dessa história é que perdeu-se, mais uma vez, uma ótima oportunidade para se falar dos altos custos das próteses de carbono e dos equipamentos que se usa no esporte adaptado e paralímpico. Deixa-se de falar e de problematizar um paradoxo que parece estar instalado no esporte paralímpico, que se propôs inicialmente como espaço de inclusão e de participação social para pessoas com deficiência, mas que pelas condições de competitividade e de alto rendimento que vêm se desenvolvendo, está se tornando excludente pelo alto custo dos equipamentos necessários para se chegar aos índices de classificação dos Jogos Paralímpicos.
  Enfim, são algumas questões a se pensar sobre o processo de midiatização e massificação do esporte paralímpico que está eminente. Uma ótima oportunidade para discutirmos diversidade e inclusão no plano da sociedade, tendo o esporte como objeto referente e como fenômeno da cultura contemporânea. Então, a pergunta que me segue é, ainda há tempo para termos o Esporte Paralímpico NA mídia, ou teremos assim como todas as outras manifestações esportivas midiatizadas, o Esporte Paralímpico DA mídia? A minha impressão, se é que interessa, é que a série da Globo só teve eficiência no nome, porque na abordagem e na informação continuou deficiente como sempre fez no trato com o esporte.

Seguimos,

Abraço,

Silvan

3 comentários:

Unknown disse...

Silvan, parabéns pela reflexão sobre a reportagem!!

Bianca Poffo disse...

Muito boa sua reflexão Silvan! Essa fase de pré-Olimpíadas e Paralimpíadas está sendo excelente para perceber como a mídia está agendando estes eventos e qual é a tendência em sua abordagem. Neste caso específico, incrível como a música de fundo era predominantemente instrumental (piano) e com aquele tom melancólico. No final, fizeram o atleta mostrar qual será seu possível "resultado" no pódio, mas esqueceram da competição "Mano a mano" exibida pelo mesmo programa há umas semanas atrás, em que o atleta afirmou que precisava melhorar sua forma física nos próximos dois meses para apresentar um melhor rendimento nos Jogos.Enfim, assim vamos acompanhando e "analisando" os rumos destes dois megaeventos.

Cristiano Mezzaroba disse...

Silvan, apesar da postagem já ser há alguns dias, só agora consegui ler com a devida atenção pois sabia que aprenderia ao ler teu texto, fruto de tuas novas observações e investigações. Parabéns pela escrita e pelo que nos convida a pensar, observar, refletir. Na verdade, quanto à tua pergunta final, não tenho dúvidas que mais uma vez o capital se apropria de uma manifestação, mesmo que essa manifestação nunca será considerada a "vitrine". Pra mim, não tenho dúvidas, o esporte paraolímpico (não deixo de utilizar o termo primeiro) sempre estará em segundo plano - mesmo com a curiosidade que temos sobre os atletas, suas dificuldades, as adversidades, as diferenças ao esporte "normal" - diante da formatação do esporte olímpico "tradicional". O que veremos serão esses estereótipos, esses clichês, esse "jornalismo fofo", como algum blogueiro do UOL comentou há poucos dias. Seja em Jornal Hoje, JOrnal Nacional, Jornal da Globo, Esporte Espetacular, Globo Esporte e tudo mais, apenas para pegar a emissora aberta líder de audiência e que já está dando grande visibilidade aos Jogos Olímpicos (bem diferente do silenciamento e ocultamento que produziu quando das Olimpíadas de 2012) vemos atletas de origem social pobre e limitada serem investigados, serem tratados como esperança de medalhas, em que a "superação" é a ênfase discursiva. Não tenho dúvidas: em relação aos Jogos Paraolímpicos que vêm por aí, logo mais, isso só aumentará.
Por fim, quanto ao termo "eficientes" é porque diante das limitações, compensadas pelo uso de próteses e tecnologias de ponta, o que vemos é uma grande eficiência nas suas práticas e técnicas. Deficientes continuamos sendo nós, com nosso olhar limitado, que subjuga o "outro" como menor.